sábado, abril 11, 2009

Tragédia.


A chuva parecia adormecê-la um pouco. Os olhos se entreabriam vagarosamente numa sensação ficta de cansaço e o cobertor pedia-lhe os pés. L sonhou com seu grande apartamento e a vista luxuosa obtida pelos metros de vidraça num formato côncavo próximo a sala de estar. Ela lia um livro que lhe arrancava um sorriso de canto e aquosidade nos olhos atentos e sutis quando alguém apareceu a pôs-se a delinear seus cabelos castanhos com as mãos. N vestia uma camisa branca bem passada e seu sorriso era tão alvo quanto aquela. Estava infalivelmente charmoso.
A decoração era poética, moderna, a via crucis da inveja mortal. Até as vestimentas de L e N contrastavam, reluziam com a penumbra que as lâmpadas causavam no gesso moldado do teto. N, encostando-se no enorme sofá Barddal bege escuro, fechou o livro em cuja apreciação de L debruçava e deu-lhe um beijo. O beijo, por sua vez, desmarcou a pagina do romance e marcou cada batida e respiração ofegante de L...parecia o primeiro contato dos dois; parecia o céu indeciso se era dia ou noite, parecia uma canção que nascia por si só, parecia um laço que desatava com o vento; parecia, e de fato havia cortina de fumaça delatando paixão incipiente nos botões descasados.
E mesmo nesse emaranhado de desejos N olhava para L como se a claridade saísse de dentro dele para dar vida a ela. Em forma de sussurro ela proferia: “te amo, sempre” e o fazia todas as noites antes de dormirem porque acreditava que os sonhos noturnos seriam melhores. Por conseguinte, a vida seria irrefutavelmente melhor. L assim agia mesmo quando a discórdia penetrava a mente e constituía mazela...mas suas palavras salvavam as manhãs em que o perdão apresentava-se nas emoções adeptas ao welcome.
Naquela noite, dormiram após conversarem e gargalharem ao dispor sobre as lembranças da vida. A face de L sobrepunha-se ao peitoral de N e uma das pontas do lençol arrastava-se pelo piso artesanal do quarto. Os perfumes se confundiam, o relógio poderia parar, entretanto, corria impiedosamente.
O telefone pôs-se a tocar e L tomou um susto; acordou e ainda possuía o romance sobre o seio. Na linha falava alguém do hospital chamando-a com urgência. O sonho bom esvaiu-se de sua mente quando, chegando ao hospital, presenciou N vestido com camisa branca ensangüentada, em estado inconsciente e mãos frias. Sentiu-se impotente diante de tal circunstância e aguardou revoltosamente por respostas. Horas depois, recebeu a noticia de que N falecera. L sonharia, a partir de então, a mesma coisa todos os dias até que as manhãs a dissessem que logo logo chegaria o momento de dormir novamente.