sábado, setembro 17, 2011

Algumas horas (im)produtivas sem celular...

Ontem foi um dia como todas as sextas-feiras, corrido e empolgante. Tudo seria razoavelmente normal se a operadora do celular resolvesse funcionar adequadamente e a chuvinha chata não resolvesse se instalar. A gente se arruma, toma chuva, se desarruma, fica por horas escutando mensagens motivacionais da grande empresa da qual fazemos parte, rimos das palhaçadas dos nossos chefes e até curtimos um pouco tudo isso.
Chega uma hora que a mente não está mais alí...está nas possibilidades. Está arquitetando um futuro que na verdade, já chegou faz tempo. Essa semana foi assim, tanto reflexiva quanto depressiva, as vezes amadurecida...lembrei-me de quando era guria e falava: “quando eu estiver com 24 anos, terei/farei...” Reticências, mil vezes reticências. Tenho 24 anos e não consegui essas coisas e nem me encontro em algumas dessas situações sonhadas. Me encontro em algumas delas, sequer imaginadas. Tenho algumas outras coisas que nunca pensei que teria e por aí vai. A vida é assim, as vezes te dá o calote, as vezes liquida antecipadamente sua dívida.
Os copos de bebida iam passeando pelas mesas e eu “nem aí” para eles. As “bombas”, mais conhecidas como “novidades que vão fazer fulano ou ciclano se lascar” iam circulando naturalmente enquanto uma goteira irritante alcançava justamente meu joelho num salão de festas imenso. Os sorrisos se espalhavam enquanto minha agonia ganhava pujança...o celular dele sequer tocava por causa da maldita operadora “fora do ar”. Fiquei fora do ar também, deleitando-me em pensamentos-clichê do tipo “quem sou eu? O que estou fazendo aqui?”
Percebi que cria em muitas inverdades. Hoje, vivo o normal para colher o anormal..o doce e almejado anormal. Escuto os gerúndios do silêncio, na fé de que os ruídos pertubadores surgirão. Mas não surgirão daquele jeito que eu sempre imaginei quando guria...surgirão como fruto de um resignado plano feliz e cauteloso. A vida é tão “Paris” que a gente fica embevecido quando vê passando. A vida mais parece uma pintura, um rótulo de chocolate, uma alucinação que enlaça a gente em altos e baixos pelas fases (idades).
Saí da solenidade ontem pensando essas coisas, ao mesmo tempo aflita com o sinal telefônico adormecido...saí sem me preocupar se a chuva desgrenhava o cabelo, se a roupa tinha cheiro de gordura ou o que as pessoas pensaram quando se despediram de mim. Saí preocupada em ligar, em avisar pra ele que tava tudo bem. Saí comumente preocupada em dizer pra vida que eu não desisti dos sonhos que cultivei, das coisas que planejei...saí querendo avisar pra vida que tá tudo bem, mesmo nos momentos fronteiriços com o caos!  Saí pensando que posso até ser “qualquer pessoa”, mas quero que ninguem seja como eu. 

domingo, outubro 24, 2010

Desequilíbrio de paz

 Engraçado como às vezes, ter equilíbrio é perder o equilíbrio. Isso é tão penoso para pessoas muito racionais, como eu. Houve um tempo, inclusive, em que eu tinha medo deste ocaso grandioso que é a vida, dessa inconstância desvairada. Pô, eu ainda peguei o tempo das cartas, dos telegramas, do pique esconde, da salada mista tímidazinha, da aflitiva e dramática consciência de onde vêm os bebês (tinha até um livro idiota- explicativo que ganhei), do picolé de R$ 0,25, do cruzeiro, caramba! Do sentar-se na porta da rua pra ver o movimento, da musica boa ressoando das caixas de som dos automóveis, do ar mais puro por aqui...É então que percebo como as coisas mudaram em pouco mais de duas décadas...hoje o delírio habituou quem estava acostumado com “banalidades”. As coisas simples ficaram tão mais simples que ninguém nem as sente, nem as vê, nem as ama.
 É por isso que eu insisto: ter equilíbrio é perder o equilíbrio. As vezes, tão somente. Viajar mais, pensar menos, amar mais, emburrar-se menos, sentir mais, mentir menos. Penhorar o coração à liberdade. O mundo é um amontoado de futilidades, mas também de utilidades. Se a vida muda, se os detalhes são, hoje, mais cheios de tecnologia que emoção e você, como eu, não se conforma muito...desequilibre-se. Perca-se, desconforme-se. Pegue a roupa mais leve e dê um passeio consigo mesmo. Não burocratize a alma.
 Sabe qual o ponto fraco/forte do equilíbrio? O amor. Ele, ao passo que confunde, salva. O amor é antiburguês. É proletário, vagabundo, irracional. O amor, quanto mais condenado à ruína, mais aproxima-se do auge...isso porque a lucidez sobre o caos da relação traz ignição forte ao coração. Mata-se e morre por amor e seu deslumbramento redundante. É a anormalidade mais normal que conheço. Um amante é um nato débil mental, visto que acredita fielmente que fará uma única pessoa feliz e será feliz, unicamente, se com ela estiver...isso, num universo de mais de seis bilhões de pessoas. Em pensar que nos amores terminados é um “quase morro” pra cá, “sem ele(a) eu não vivo” pra lá. A verdade é que o amor tem que ser sempre eterno, mesmo quando acaba. O amor não é matrimonializado, patrimonializado, não é contrato, não é ter uma casa bonita com carro na garagem e filhos brincando no lindo jardim. O amor é a irrenunciável esperança de ser livremente cativo ao outro. O amor arrebata e funda o paraíso da cumplicidade. É desequilíbrio equilibrado. Faz bem.

O equilíbrio é a paz. As vezes o equilíbrio é desequilibrar-se para ter paz. Não importa como a gente organiza a vida, se estivermos em paz...está tudo bem. Durma, acorde, ame, medite, apaixone-se, cante, dance, trabalhe, perdoe-se, respire...em paz com a vida.

sábado, maio 15, 2010

Gris


Uma crônica baseada em fatos reais, não fatos meus, mas reais.

No bar. Um jazz. Aliás, um jazz-blues-bossa nova extasiante. Eu sempre me incomodei com cheiro de cigarro, mas naquele bar, os pequenos rolos de papel manteiga sofisticado que cobriam o vil veneno deslizavam pelos lábios alheios numa harmonia colossal. Nas mãos esquerdas, garrafas de vitral verde eram a vislumbre embalagem de cerveja alemã. Nada disso me “chamava”...nem cigarro, nem cerveja, mas era algo interessante de se ver. Um bar cheio de peculiaridades. Cheio de “frescuras” como dizem alguns; contudo, os olhares, as roupas indie rock – fashion as usual, as diversidades, as pessoas, o ambiente, as cores em preto, branco e cinza, o ícone vinil e as falas nada viris me causavam uma sensação de estar fora. Fora da cidade, do estado. Preconceito meu? Sim, eu sei. Mas foi o que pensei.

A musica estava sensacional. Musica sempre me diz muita coisa, se não for boa, nada fica bom. Os amigos eram maravilhosos. Mas eram só amigos. Senti-me sozinha, boemia, com frio. Sabe aquele frio que só te sugere um longo suspiro que na verdade queria dizer “cadê alguem para me abraçar ou oferecer um casaco?”. Amigos fazem essas coisas, mas definitivamente não é a mesma coisa. E a coisa é essa necessidade insana de fazer da vida um jogo a dois. Dois indivíduos, duas dores, duas renúncias, duas musicas, dois corpos, dois multiplicado por mil preocupações. Agora me diz: pra quê? Por que? Foi então que tocaram “chasing pavements” e eu parei de pensar nessas indagações infundadas, voltei à fútil carência de cada dia. Voltei à boba sensação de viver numa comédia romântica...mamãe sempre disse que a vida não era um filme e muito menos seriado. Desejei ser atriz só pra ter o gostinho de enfeitar a existência de quermesse...puro ato farsesco de desejos contidos. Contidos, embora, essenciais.

Foi então que o vi. O vi com um copo de cappuccino gelado pedindo à banda pra tocar um pop-dance. Gostei de pronto. Eu estava de short-jeans-surrado e uma blusa leggie de marca. Ele estava lindo...do jeito que me vestiria se tivesse nascido homem: camiseta lisa marrom, calça jeans reta, quase skinner e...olhamos ao mesmo tempo como um tiro para nossos pés que, coincidentemente estavam revestidos por um “encardido” allstar. Ele sorriu pra mim, com um daqueles sorrisos de canto sugerindo uma aproximação perigosa. A distancia entre nós era considerável e eu dançava de olhos fechados, deixando a música penetrar meus sentidos e assim, não ter vergonha ou receio de ser sexy. Soltei os cabelos numa aparição cinematográfica e abri, então, meus olhos. Lá estava ele..quase do meu lado; fiquei inepta, tonta com os olhos daquele cara, tremi, oscilei os sentidos, suei e, num paradoxo àquelas sensações, deu um sorrisão grande, daqueles que todo mundo elogiava em mim. Deu certo. Ele se aproximou mais...o perfume se espalhou, arrepiei. Reparei no jeito que ele passava a mão na nuca e não sabia onde colocá-la depois; na modo como continuava a me encarar...foram uns quinze minutos de troca de olhares e nada mais. Sutilmente ele mordia o lábio carnudo inferior, umedecendo-o. Eu enlouqueci, perdi o frio, perdi a consciência, perdi a noção do tempo.

Conversávamos com o corpo, com os olhos, com os lábios. Um paralaxe de semiótica teatral. Nada farsesco, nada usual...era a tal da “química”. Ele não pediu e muito menos deixei, mas nos beijamos. Morreria feliz, era tudo o que eu queria num beijo. Ele sabia milimetricamente o que eu ansiava e eu, parecia adivinhar os desejos dele. “Surrealista, mas encantador”, frase do texto de “Um lugar chamado Notting Hill” que descreveu aquele lance. Tudo aquilo foi fluido e arrasador, insano, uma bobagem...embora bom, muito bom. Minha mente abrigava um amontoado de inutilidades enquanto conversávamos, a maxilar dolorida de tanto sorrir, deliberadamente fascinada, um bourbon.

Infeliz foi a hora de ir. Meus amigos me puxavam para fora do bar. Ele pediu meu telefone e eu o dele. Obviamente não ligaria primeiro, é a ordem natural das coisas. Segui para a porta com um carnaval no peito e um suor frio nas mãos. Entrei no carro com uma sensação de despedida do tal espetáculo vesperal de uma doce paixão. Incipiente, mas paixão. Sim, fora pueril, nada exagerado, fora tenso e ao mesmo tempo leve, refrescante. Que fazer? Talvez percorrer as ruas, ocultar a ansiedade, os objetos, ou ainda, expor-me a tudo, sem receio, sem culpa nem desculpa.

Outro dia, pela manhã. Os jornais anunciavam um assalto da noite anterior num determinado bar. No que fui. Cinco jovens feridos e dois mortos que tentavam fugir para não serem reféns. Um dos mortos: o cara que conheci, beijei, sonhei e me apaixonei. Agora, só imaginem como fiquei, não tentem sentir o que senti. De fato, um coração gris.

quinta-feira, abril 15, 2010

"O samba, a prontidão/e outras bossas,/são nossas coisas(...)"

Bem como a vida exprime a mistura e o encanto de ser unicamente plural, há, dentre outras coisas interessantes, a bossa nova. De um emaranhado de etéreas sensações, faz-se esse jazz-samba que alimenta paixões. A bossa nova, desde o seu surgimento quase que espontâneo, um paradigma musical autenticamente brasileiro, nasceu preciso..., preciso para viver. E viver, na alma do artista é revolucionar o marasmo dom de manter-se omisso. Cantar, por sua vez, é fazer uma faxina na alma e dançar é, singelamente repousar sobre um gozo fatigante. “Isso é bossa nova, isso é muito natural...”. Tropicália, bossa, clube da esquina...as eras perduram e aquecem os corações saudosos. Até quem não nasceu nesses dias tão brilhantes sufocam em nostalgia.
- Bossa nova é iguaria fina – disse o velho Cajazeira enquanto sussurrava “desafinado” e dedilhava o violão.
- Quero morrer ao som de “wave”, na beira do mar – suspirei .
- Vire essa boca pra lá menina! – retrucou – Pense em musica enquanto tiver ar nos pulmões.
- Como a musica brasileira consegue ser tão amorosa, leve e refinada hein seu Cajazeira? Eu proponho um brinde! – ri ao ver o sorriso largo de Cajazeira.
- É o prefácio Manoela, um prefácio da vida. – pronunciou em tom de voz baixo e sonhador enquanto erguia a taça de vinho.
- Boa noite, vocês me desculpem por estar interrompendo a conversa, mas é só um minutinho. – disse um rapaz que se aproximara de nossa mesa.
- Ah, pois não. – disse Cajazeira surpreso.
- Bem, não é a senhora que é a cantora? Aquela loirinha que canta? Minha filha está ali me perturbando dizendo que é você. – os olhos do homem fixaram-me.
- Cantar eu canto, mas eu não tenho certeza de que sou eu a cantora a qual sua filha se refere.
- Kelly minha moleca, vem cá! Vem ver, é ela! Sua chará! – a adolescente correu.
- Sua cha..?
- Olhe, eu não quero intrometer nada viu? Podem continuar conversando...mas será que você poderia fazer um sonzinho nesse bar? Assim, ao vivo...é que minha Kelly faz aniversario hoje e ela é sua fã sabe?
- É, talvez ela possa – disse Cajazeira rindo com o canto da boca numa expressão maldosa.
- É, talvez eu possa.
- Você se incomodaria se antes eu “batesse” uma foto de vocês duas?
- Eu...
- É pra ela colocar ampliada na parede do quarto.
- Mas..
- Você pode encostar mais pro lado esquerdo?
- É...
O flash foi tão forte que devo ter ficado com os olhos fechados na fotografia. Levantei rapidamente sem escutar mais o que o homem dizia e puxei Cajazeira comigo para o pequeno palco do bar. Cantei “samba de verão” sorrindo para a tal menina Kelly e seu pai que tanto me pirraçou. Eles pareciam felizes, embora insatisfeitos.
- Psiu! Escute! – sussurrou Cajazeira para que ouvíssemos o comentário do pai da garota já na saída do bar: “- ela não cantou ‘Barbie girl’ não é mesmo filha? Aquela que você mais gosta...” .
Rimos. Rimos e descobrimos que apesar da confusão, a fotografia pendurada na parede do quarto da moça será a da jovem cantora anônima de bossa nova. E olha que eu tentei avisar, juro que tentei. Rs.

terça-feira, janeiro 19, 2010

Inspiração.


A vida tem sido tão cool quanto um wayfarer e dias ensolarados. O mundo está tão misturado, tão desastrado e virado do avesso que anda aproximando perigosamente razão e emoção, ambos em puro e vil destaque. Os sonhos são quermesse. Os detalhes a gente compra do destino e lança sobre um dos caminhos que as escolhas permitem que a gente siga. O tempo? Esse voa. Voa tão rápido que o clichê “dê tempo ao tempo” sugere hipérboles sutis.

A verdade é que o circo chegou no meu peito. Chegou depois de um natal incomum, dizendo-me, que ia ficar. Chegou como tudo na vida deveria chegar, de surpresa. Chegou rápido, puro e simples. Depois da vã tolice de tentar explicar o coração através de etéreas presunções de auto-ajuda ambulante; veio a sensação pueril da paixão. Depois das noites de sono interrompidas por um choro contido; veio a esperança cravada num par de olhos cor-de-mel. Depois de tanto desacreditar numa proteção apartada de falsidade; surgiu um abraço que teletransporta a respiração. Depois de desistir de sublevar a alma..um beijo simplesmente a completa.

Seja bem vinda de volta, inspiração. Se trazes pra mim a contradição, que seja! Whatever! Pensar em como bossa nova e forró podem coexistir num mesmo plano, esquenta a cabeça, mas, sobretudo, o coração. O amor tem dessas coisas.

domingo, novembro 08, 2009

Divã

Na sala com um psicoterapeuta...

- Sabe, demorei pra falar sobre o amor... Não sei nem mais escrever cartas de amor, poemas de amor. Ainda que haja uma explicação para tal fato, não há racionalidade nem sequer certames, tópicos, ilustrações. Irrefutavelmente, existem coisas que eu sei que acontecerão de novo, embora eu também deseje que nunca mais aconteçam. O sobrenatural é deveras inebriante ao passo que a tragédia está sempre bem presente na vida real, irracional, etérea.

Devaneios confusos norteiam o coração. Adquiri um defeito camuflado por uma nuvem de ingenuidade sob os olhos: a ilusão alcança a todos os seres. Caso soubesse convictamente deste acaso, teria me debruçado sobre a riqueza material e imaterial; intransponíveis. Brincar com o amor tem lá suas recompensas, quer sejam boas, quer sejam ruins. O perigo, definitivamente, malogra o excitamento de um coração vaidoso. Será que eu também caí neste encantamento? Será que a decepção deixou meu ser abjeto?

É certo, pois, que não fica impune, nenhum olhar mortal sobre mim. Pior de tal fato é a ciência disto nos lampejos de meus pensamentos. Revogo o interesse físico e metafísico até que a sede cativa à paixão assenta-se cruelmente em uma desilusão, quase que circunstancial. Alem de encantar, saberia desencantar sem deixar mazelas, impregnando um rastro da mais sublime alteridade.

- Quem és? - Perguntou o Dr W.

- Sou um anjo maquiavélico encantadoramente irônico. Um inferno ético que assola o campo das emoções e sentimentos engessados ao meu redor.

- Que farás quando achares um amor?

- Não faço a menor ideia.


Para aqueles que ainda acreditam no amor, mesmo não fazendo a menor ideia de como ele virá...

domingo, agosto 23, 2009

Vicissitudes

O calor percorria meu corpo despretensiosamente naquela manhã de quinta feira. Eu estava atônita e perplexa com a mudança brusca do tempo. No dia anterior, o vento frio dava-me satisfação de um inverno reminiscente, empolgante, promissor. Se há alguma mazela que destrói meu humor e disposição para ir ao trabalho cotidianamente, isso se chama “dia quente”.
Ofegante, apontei um dos braços para que o transporte coletivo parasse mesmo depois do ponto. Estava atrasada. Era tênue a expressão em meu rosto; suada e tensa, eu me lamentava franzindo a testa por um pessimismo latejante de mais um dia estressante.
- Bom dia – eu disse num tom de extrema obrigatoriedade e eventualidade. O motorista não respondeu e me virei complexada...havia um fone em seus ouvidos.
Prossegui em direção ao cobrador e uma senhora sentada à cadeira próxima lhe perguntava em que ponto descer para encontrar uma lojinha perto do viaduto da Av Régis Pacheco. Eu atravessei a fala do cobrador e instruí a senhora que, por conseguinte, me retribuiu com um sorriso amistoso. Sentei-me, pois, adiante, ao lado esquerdo onde as janelas estavam escancaradas e a brisa adentrava-se presunçosa. Não havia ninguém ao meu lado. É curioso notar a disposição dos seres humanos que usam ônibus; sempre procuram um lugar em que ambos os assentos estejam vazios. Gostam da solidão e o olhar divagando sobre as janelas empoeiradas, “pensam na vida” com o silêncio fugidio interrompido pelo grosso barulho do motor do veiculo. Alguns sentem sono, outros saudade, já outros só observam enquanto muitos outros sonham. A fuga dos pensamentos é sempre boa, mas quando não possuem sentido ou lógica são ótimas.
Propositalmente olhei fixo para uma moça sentada do outro lado, mas na mesma direção, que deveria ter mais ou menos a mesma idade que eu. Tentei não olhar tanto, mas chamaram-me a atenção algumas falhas em seu couro cabeludo disfarçadas por um loiro, liso e ralo cabelo. Percebi que dois rapazes sentados atrás da moça cochichavam pelo mesmo motivo que chamara minha atenção. Tentei acordar do hipnotismo que me prendera à face fria, pálida e doente da jovem. Não consegui. Levantei-me num impulso curioso.
- Com licença, posso me sentar? – indaguei à moça.
-Ah sim, claro. – ela disse quase num sussurro.
Após uma breve apresentação formal e um silencio posterior instigante, eu disparei:
- Humm, não quero parecer inconveniente, mas eu estava observando você do outro lado – por um instante tive medo de ser intrometida, mas algo me impulsionava e quando eu menos esperava... – o que houve? Digo, você esta bem? – respirei num misto de alivio e culpa. Ela riu de canto.
- Eu tenho câncer. – eu não consegui uma feição assustada ou qualquer uma que demonstrasse o que realmente sentira. Saí de casa impregnada por um paradigma do meu mundo egoísta e meu pavor constante pelo calor e agora estava à frente de uma realidade bem mais ávida. – E você é a primeira pessoa “desconhecida” que me pergunta em vez de ficar só olhando meus poucos fios de cabelo na cabeça. – ela completou rindo de novo, eu assenti.
- Você se sente feliz? Tipo...apesar de tudo? – gaguejei.
- E você também acaba de ser a primeira pessoa que me pergunta isso me vez de “como vão as sessões de quimioterapia?” – ela parecia satisfeita com o subjetivismo de minhas perguntas, que para ela, eram incomuns. – Sou sim - disse complacente – o medo de não ter tempo para realizar tudo que quero, faz com que eu viva intensamente todos os dias. Ninguém vive aguardando uma morte acidental, ainda mais na minha e na sua idade – explicou pausadamente - mas eu aguardo a morte que, de fato, é prevista. E pode acreditar, isso me faz “ter pressa” em ser feliz.
Emudeci. Meus olhos ensopados com lágrimas teimosas diziam para a moça: “você tem toda razão”. E antes que eu pronunciasse algo, meu ponto chegou e eu tive que me levantar rapidamente.
- Até outro dia – disse.
- Até – o sorriso escondido nos lábios ressecados da jovem despontou lívido.
O forte odor de gordura que era expelido pela pastelaria em frente ao ponto de ônibus das minhas paradas cotidianas nem pareceu me incomodar, como de praxe. A realidade fria aquecera meu coração fútil. Vicissitudes; o nome que dou à fantástica mania que a vida tem de nos ensinar a viver.


Crônica que dedico a todos que anseiam a felicidade leve, boa e apaziguadora.