Uma crônica baseada em fatos reais, não fatos meus, mas reais.
No bar. Um jazz. Aliás, um jazz-blues-bossa nova extasiante. Eu sempre me incomodei com cheiro de cigarro, mas naquele bar, os pequenos rolos de papel manteiga sofisticado que cobriam o vil veneno deslizavam pelos lábios alheios numa harmonia colossal. Nas mãos esquerdas, garrafas de vitral verde eram a vislumbre embalagem de cerveja alemã. Nada disso me “chamava”...nem cigarro, nem cerveja, mas era algo interessante de se ver. Um bar cheio de peculiaridades. Cheio de “frescuras” como dizem alguns; contudo, os olhares, as roupas indie rock – fashion as usual, as diversidades, as pessoas, o ambiente, as cores em preto, branco e cinza, o ícone vinil e as falas nada viris me causavam uma sensação de estar fora. Fora da cidade, do estado. Preconceito meu? Sim, eu sei. Mas foi o que pensei.
A musica estava sensacional. Musica sempre me diz muita coisa, se não for boa, nada fica bom. Os amigos eram maravilhosos. Mas eram só amigos. Senti-me sozinha, boemia, com frio. Sabe aquele frio que só te sugere um longo suspiro que na verdade queria dizer “cadê alguem para me abraçar ou oferecer um casaco?”. Amigos fazem essas coisas, mas definitivamente não é a mesma coisa. E a coisa é essa necessidade insana de fazer da vida um jogo a dois. Dois indivíduos, duas dores, duas renúncias, duas musicas, dois corpos, dois multiplicado por mil preocupações. Agora me diz: pra quê? Por que? Foi então que tocaram “chasing pavements” e eu parei de pensar nessas indagações infundadas, voltei à fútil carência de cada dia. Voltei à boba sensação de viver numa comédia romântica...mamãe sempre disse que a vida não era um filme e muito menos seriado. Desejei ser atriz só pra ter o gostinho de enfeitar a existência de quermesse...puro ato farsesco de desejos contidos. Contidos, embora, essenciais.
Foi então que o vi. O vi com um copo de cappuccino gelado pedindo à banda pra tocar um pop-dance. Gostei de pronto. Eu estava de short-jeans-surrado e uma blusa leggie de marca. Ele estava lindo...do jeito que me vestiria se tivesse nascido homem: camiseta lisa marrom, calça jeans reta, quase skinner e...olhamos ao mesmo tempo como um tiro para nossos pés que, coincidentemente estavam revestidos por um “encardido” allstar. Ele sorriu pra mim, com um daqueles sorrisos de canto sugerindo uma aproximação perigosa. A distancia entre nós era considerável e eu dançava de olhos fechados, deixando a música penetrar meus sentidos e assim, não ter vergonha ou receio de ser sexy. Soltei os cabelos numa aparição cinematográfica e abri, então, meus olhos. Lá estava ele..quase do meu lado; fiquei inepta, tonta com os olhos daquele cara, tremi, oscilei os sentidos, suei e, num paradoxo àquelas sensações, deu um sorrisão grande, daqueles que todo mundo elogiava em mim. Deu certo. Ele se aproximou mais...o perfume se espalhou, arrepiei. Reparei no jeito que ele passava a mão na nuca e não sabia onde colocá-la depois; na modo como continuava a me encarar...foram uns quinze minutos de troca de olhares e nada mais. Sutilmente ele mordia o lábio carnudo inferior, umedecendo-o. Eu enlouqueci, perdi o frio, perdi a consciência, perdi a noção do tempo.
Conversávamos com o corpo, com os olhos, com os lábios. Um paralaxe de semiótica teatral. Nada farsesco, nada usual...era a tal da “química”. Ele não pediu e muito menos deixei, mas nos beijamos. Morreria feliz, era tudo o que eu queria num beijo. Ele sabia milimetricamente o que eu ansiava e eu, parecia adivinhar os desejos dele. “Surrealista, mas encantador”, frase do texto de “Um lugar chamado Notting Hill” que descreveu aquele lance. Tudo aquilo foi fluido e arrasador, insano, uma bobagem...embora bom, muito bom. Minha mente abrigava um amontoado de inutilidades enquanto conversávamos, a maxilar dolorida de tanto sorrir, deliberadamente fascinada, um bourbon.
Infeliz foi a hora de ir. Meus amigos me puxavam para fora do bar. Ele pediu meu telefone e eu o dele. Obviamente não ligaria primeiro, é a ordem natural das coisas. Segui para a porta com um carnaval no peito e um suor frio nas mãos. Entrei no carro com uma sensação de despedida do tal espetáculo vesperal de uma doce paixão. Incipiente, mas paixão. Sim, fora pueril, nada exagerado, fora tenso e ao mesmo tempo leve, refrescante. Que fazer? Talvez percorrer as ruas, ocultar a ansiedade, os objetos, ou ainda, expor-me a tudo, sem receio, sem culpa nem desculpa.
Outro dia, pela manhã. Os jornais anunciavam um assalto da noite anterior num determinado bar. No que fui. Cinco jovens feridos e dois mortos que tentavam fugir para não serem reféns. Um dos mortos: o cara que conheci, beijei, sonhei e me apaixonei. Agora, só imaginem como fiquei, não tentem sentir o que senti. De fato, um coração gris.